PATRIMÓNIOS FLUTUANTES: A exposição “30 anos da oficina-escola de bordados regionais”*
Em tempos marcados por salutar busca de uma redentora imagética albicastrense que seja capaz de estabelecer alguma distinção face ao arquipélago urbano português cada vez mais mimético, os Bordados de Castelo Branco têm vindo a ocupar uma presença saliente nos discursos dos agentes políticos, educativos, económicos e culturais locais. “Alavanca do progresso”, “ imagem da cidade”, “atractivo turístico”, “ paradigma da cidade”, “maior ex-libris cultural e patrimonial da região”,“ alma de Castelo Branco” são alguns dos múltiplos epítetos que se têm imbricado a essas criações artísticas resultantes dos gestos e ritmos da introdução de sedas cromáticas numa superfície de linho, seguindo um determinado e ancestral conjunto de normas técnicas e simbólicas.
Nesta linha, é de toda a justeza salientar a persistência, o empenho e a oportunidade desenvolvidos pelos deputados do Partido Socialista do Distrito, principalmente pela voz e pela correctíssima gestão da senhora deputada Dr.ª. Hortense Martins que, ao proporem a fundação do ‘Centro de Promoção e Valorização dos Bordados de Castelo Branco’, deram um passo firme e determinante tendente a inverter todos os cenários de indefinição e de completa anarquia cultural e económica em que esta peculiar forma artesanal hoje se encontra. Para qualquer observador mais atento foi notável, e será de registar, o peso que os problemas endógenos dos Bordados e o eco da iniciativa socialista tiveram junto de todas as famílias ideológicas do hemiciclo, num momento da vida parlamentar portuguesa já considerado por alguns de «histórico». A ida de uma comitiva da cidade (com duas das últimas bordadeiras do Museu) até à Assembleia da República, no passado mês de Março, consegui, para além de simbolicamente conjugar o oriente com o ocidente, reforçar (disseram) a nossa identidade nacional ao unir todas as sensibilidades políticas representadas no Parlamento. Jaime Gama exultou a exemplaridade dessa convergência legislativa, pois a preservação desta peculiar expressão do «património ornamental nacional» uniu o País. E, quando apontou para dois vestidos pendurados à entrada do hemiciclo, exemplos dos novos suportes bordadísticos, sabiamente comentou: «A única coisa que falhou foi as deputadas de Castelo Branco não virem vestidas assim». Quem sabe se a segunda figura do Estado não virá a dar o exemplo e, em Setembro, após as merecidas férias parlamentares, não comece a vestir camisas ou calças ‘ornamentadas’ com os ricos bordados açorianos, nomeadamente os da ilha de S. Miguel, terra da sua naturalidade
É, então, ao Centro para Promoção e Valorização dos Bordados de Castelo Branco, a quem caberá: «definir Bordados de Castelo Branco, através das suas características materiais e artísticas; Promover, controlar, certificar, fiscalizar a qualidade, genuinidade e demais preceitos de produção; Promover e colaborar no estudo e criação de novos padrões e desenhos, no respeito pela genuinidade»ou Promover acções de formação e valorização profissional». Vai-se então iniciar um novo capítulo da trémula história dos Bordados de Castelo Branco, terminando definitivamente as indefinições, os amadorismos, os oportunismos e as ingenuidades que envolvem o futuro dos ‘Bordados.’
Com efeito, durante a última década, a reprodução e a continuidade desta forma artesanal e a tentativa da sua inclusão em sistemas de gestão económica mais racionais, em várias ocasiões e contextos, foram, objecto de preocupações. Relembremos apenas um desses momentos da história recente dos Bordados marcado pela fundação em Abril de 1990 pelo NERCAB da “Comissão de Apoio ao Artesanato” local. Esse grupo de reflexão e de trabalho, coordenado pela Drª. Ana Paula Rafael e pelo Dr.º. Alfredo da Silva Correia, englobava representantes e técnicos de um alargado arco instituições citadinas: Câmara, IEFP, IPJ, Governo Civil, Politécnico e do Museu, assumindo como objectivo primordial da sua constituição: «a defesa e valorização do artesanato da região, preservando-o como valor patrimonial e desenvolvendo-o como actividade económica.».Pela leitura das actas das reuniões se conclui que os Bordados centralizaram as reflexões e as propostas:«Foi unanimemente aceite que a acção a desenvolver se centraria no Bordado de Castelo Branco não só por este se tratar de um produto de alta qualidade, com tradição cultural, como tendo um mercado (a oferta não satisfaz a procura) e garantindo condições de expansão e rentabilidade para os seus artesãos». O grupo teve como ponto de partida :«a existência, no Museu, de uma oficina que dispõe de know-how para definir qualidades e difundir conhecimentos e bem assim várias candidaturas, recebidas pelo IEFP, para unidades de produção e de ensino». .E salientava-se: «duas circunstâncias obstam a um desenvolvimento correcto do sector: o abastecimento de matérias primas (especialmente da seda, que é importada) e o estabelecimento de um selo de garantia, que impeça a falsificação de um produto de qualidade” .A direcção do Museu de então «mostrava-se disponível para actuar em vários aspectos e,. ainda segundo as actas, «definir e garantir a qualidade dos Bordados; o Museu através da sua Oficina Escola de Bordados propõe-se no âmbito desta Comissão e em colaboração com o IEFP fomentar e desenvolver a realização de acções de formação ». Da qualidade e respectivas qualificações dos formadores, dos planos curriculares, das horas recebidas por cada um desses especialistas, dos horários, dos dinheiros europeus (que nessa altura abundavam) gastos nessas acções escuso-me de emitir qualquer consideração. É domínio da história económica e social contemporânea, quiçá tema de tese daqui a alguns anos quando alguém se dispuser a analisar o impacto e a eficácia no tecido produtivo regional nessas formações bordadísticas. É verdade que a oferta do ‘produto’ aumentou. Os resultados aí estão. Alguns, hoje, vendem-se!
Foi inaugurada no Museu Tavares Proença Júnior de Castelo Branco pelas 16 h 30m do pretérito 21 de Julho uma exposição intitulada: “30 anos da Oficina-Escola de Bordados Regionais”. Como não me pude deslocar à Instituição já que faço parte do ‘público’ que a essas horas do dia se encontra, não em actividades de deleite espiritual, mas a trabalhar, não assisti, como era minha intenção, a tão importante celebração. Diga-se, contudo e em abono da verdade, que não sou nem nunca fui grande frequentador de inaugurações sejam elas de exposições das variadas disciplinas artísticas ou de obras públicas. Reconheço, porém, que qualquer inauguração possui, entre outras características, um carácter de relimitação e de redefinição de fronteiras espaciais e cronológicas individuais e colectivas. Escolhe-se uma dada data para que alguma coisa seja transferida do domínio individual ou do círculo restrito para o todo social, alargando-se assim o campo comunicacional inicial. Uma inauguração assume-se igualmente, para muita gente, como um importante momento de sociabilidade fazendo parte da estratégia de visibilidade de cada um face ao colectivo. Lá fui ao Museu uns dias depois, a fim de visitar a mostra evocativa tendo sempre presente que, como qualquer construção cultural, a leitura de uma exposição é sempre plural, individual e, por vezes, subjectiva e decepcionante. «O museu é uma instituição permanente, sem objectivos lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberto ao público, e que produz investigação sobre testemunhos materiais do Homem e do seu ambiente que, uma vez adquiridos, são conservados, divulgados e expostos para fins de estudo de educação e de deleite»: deste modo se apresentam nos estatutos do ICOM, as funções de qualquer Museu enfatizando-se a investigação como coordenada fundamental que conduz ao programa expositivo. Uma exposição não é só pendurar quadros como me costumava dizer o grande pintor surrealista Cruzeiro Seixas. O processo criativo de qualquer exposição implica todo um trabalho a montante: de concepção, de análise, de conjugação das fontes, dos objectos, das mensagens a emitir, antes da sua materialização É o chamado guião da exposição do jargão mínimo de qualquer prática museográfica correcta. Tenho sempre bem presente os ensinamentos prestados por mestres da museologia portuguesa (relevo pela sua constante acção os meus amigos Professores Coutinho Gouveia e António Nabais), ao defenderem que em instituições vocacionadas para práticas expositivas (principalmente iniciativas temporárias) mais do que a vertigem quantitativa é sempre a afirmação qualitativa que deve imperar. Afinal ,qualquer discurso expositivo é sempre efémero. Mas voltemos à exposição, iniciativa pertinente e mais do que justificada tendo em consideração a emergência do novo Centro. A mostra, acima de tudo pretendeu, e segundo o folheto,:«desvendar a face humana da Oficina-Escola através do recurso a documentação e fotografias ilustrativas do pulsar deste serviço verdadeiro microcosmos dentro do Museu».
Há 30 anos estávamos em 1976, como diria com toda a propriedade monsieur de la Palisse. O decreto 805 de 8 de Novembro de 1976 , assinado pelo então primeiro-ministro Dr. Mário Soares no início 1º Governo constitucional, criou ab ovo, no Museu Francisco Tavares Proença Júnior, uma Oficina-Escola de Bordados Regionais estabelecendo-lhe bem os objectivos:”As actividades da oficina-escola consistem na produção, conservação, restauro e divulgação de tecidos e de bordados regionais.», entre outros. Dois anos após o 25 de Abril, o país fervilhava após a experiência do PREC, caminhando para uma estabilização do sistema que se inscreveu com as palavras democracia e, principalmente, liberdade. Os tempos não estavam muito vocacionados para preocupações bordadistícas albicastrenses ou no que dizia respeito ao futuro das jovens e das mestras de bordados oriundas das estruturas da Mocidade Portuguesa Feminina. Com efeito, a MPF tinha sido extinta pelo decreto-lei nº 171 de 25 de Abril de 1974 ,conjuntamente com o Secretariado para a Juventude ,a Legião Portuguesa, o Secretariado para Juventude e a Direcção Geral de Segurança. Daí então podermos concluir que o Centro da M P albicastrense foi, oficialmente, extinto. Teria sido pertinente apresentar na exposição algumas das representações e apropriações locais e nacionais das peças elaboradas no Centro da M P F no lustro que antecedeu a queda da Ditadura. Desde logo poderemos adiantar que a posição dos novos desígnios educacionais propostos pela reforma do Prof. Doutor Veiga Simão, a tal «batalha da educação” como se lê no preambulo do dec.-lei de 28 do Outubro de 1971, remeteu o Bordado para o domínio de meras actividades circum-escolares. A reforma não se enquadrava com as tradicionais funções dos artesanatos ( a expressão nem era essa) dos “valores domésticos”, da pedagogia funcional de género, durante tantos anos repetidos à exaustão pelos manuais de civilidade feminina que foram as revistas ‘Menina e Moça’, ‘Lavores e Trabalhos Manuais’ ou a ‘Fagulha’. Portanto, há que interrogar: como é que se processou a passagem do Centro de Bordados da M P albicastrense para o seio do Museu da cidade?
Terá sido tão linear como a observação das fotografias patentes na exposição transmite facto quase do tipo ‘mudança na continuidade’ para utilizarmos uma expressão tão cara ao regime deposto a 25 de Abril de 1974?
E continuemos: Qual a posição dos elementos locais da Vª Divisão do MFA e da comissão liquidatária nacional da MPF face ao assunto?
As campanhas de dinamização cultural desenvolvidas no distrito, tiveram algum dia em consideração a preservação deste saber artístico ?
E qual o papel motivador em relação às formas artesanais locais desenvolvido pela brigada do serviço cívico estudantil em 1975?.Mais. E quanto à situação profissional das bordadoras e das mestras do extinto Centro de Indústrias Regionais da MPF fundado em 1956?
Como e onde é que sobreviveram ‘laboralmente’ falando ? Não consta que tenham sido acolhidas no Pavilhão da Lata que então ocupava a Devesa ou votadas ao ostracismo provocado pelo clima de saneamentos que marcou a época . E como é que foi feito o controlo e a continuação da produção durante esse período?
Em suma: como é que este brioso e exemplar conjunto de trabalhadoras passou do incerto estatuto de repetidoras de técnicas tradicionais para a excepcionalidade de artesãs funcionárias públicas?
Enfim. A exposição “30 anos da Oficina-Escola do Museu de Francisco Tavares Proença Júnior”, afinal, pouco ou nada desvendou. Desvendar significa só e apenas destapar os olhos.
*Por: PEDRO MIGUEL SALVADO
Nota:
Importante reflexão do Dr. Pedro Miguel Salvado sobre a temática do Património, sobretudo quando se fala que os Bordados de Castelo Branco irão abandonar o Museu de Francisco Tavares Proença Júnior, com a saída das bordadeiras.
Em 2006 foi publicado na "Gazeta do Interior" uma versão semelhante.
O texto foi-nos cedido para publicação pelo seu autor.
Etiquetas: Bordados de Castelo Branco, Castelo Branco, Património Arqueológico, Patrimónios flutuantes
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